IX
Ao romper do dia
Emergindo da linha do infinito, o Sol apresentava-se claro e brilhante nessa manhã primaveril.
Já há muito tempo que a azáfama era grande na Bonzaria do Templo de "Tin-Hau" e a primeira refeição frugal, servida no jardim do templo, atraía, até junto de um bambual, grande número de bonzos, que rodeavam o Superior.
Este, abençoando as frutas de que consistia o primeiro repasto, dava início à refeição, provando um suculento pêssego. E a conversa iniciou-se, versando o tema de maior interesse do momento, o caso da imagem da Deusa do Céu.
Já nada há que recear! - disse o Superior. - Guardada como está a imagem na arca-forte do meu quarto, não creio que haja quem lhe chegue.
- E guardaste lá, porventura, a cautela da casa de penhor? - perguntou o bonzo Chan.
- Guardei-a, juntamente com mais algumas relíquias do Templo, como o célebre olho do Dragão perdido, pérola a que os entendidos nunca conseguiram estimar o valor - continuou o Superior.
- O roubo, no meu entender, teve apenas o carácter de devoção e nunca o interesse do valor - disse o bonzo Cheong. - Não achei, portanto, de necessidade o cuidado que tiveste mandando desprover a imagem dos brilhantes, que eram parte integrante do seu todo. - Perdoai-me, Senhor, que vos diga que a Imagem, que tendes guardada, não possui já o seu próprio valor espiritual que, residindo no todo, também residia nas partes. E, de resto, ornada de pedras falsas, ela será como um excelente campo de semeadura, que jamais produzirá, por lhe faltar a luz do Sol.
- Tendes razão! - atalhou o Superior. - Chan, na melhor intenção, deu-me o conselho, que de momento segui, por mera precaução, mas vejo agora que não nos cabia o direito de nos atrevermos a um tal procedimento. Para mais, segundo nos informou o guarda A-Chan, quem se encontra nesta cidade, vindo da terra do Templo de Á-Má, é um polícia e não um ladrão.
- Mas Senhor! - atalhou o bonzo Chan. - Quem se encontra nesta cidade é um polícia, é facto, mas um polícia que procura reaver o que foi roubado. Não lhe ficará mal à sua dignidade profissional usar de todos os meios ao seu alcance para apoderar-se da imagem. De resto, eu sei, por assim o ter ouvido dizer, que o polícia em questão é dos mais astutos e ousados, não sendo de estranhar, portanto, que a imagem possa ser roubada por ele, ou por alguém que venha do seu mando.
- E, admitindo a hipótese de que a imagem é roubada novamente deste Templo, - disse o Superior - de que nos servem os brilhantes que temos empenhados? Se a imagem for roubada, volta para o Templo de Á-Má e aí, em todo o seu esplendor, continuará a sua obra milagrosa. Mas, incompleta como está, - por um interesse que a nossa leviandade aconselhou, - pode perder o seu valor divino e não ser de utilidade a este ou a qualquer Templo que venha a possuí-la.
E, pensando, acrescentou: - Dizei vós todos, cujo conselho peço, se a imagem deve ou não ser conservada em todo o seu esplendor, com os dois brilhantes de real valor, que primitivamente ostentava?
Todos os bonzos se conservaram de cabeça baixa, e o mais velho, depois de fixar a fisionomia dos restantes, disse ao Superior: - Deve.
Então, o Superior, olhando o bonzo Chan, que não se atrevia a levantar os olhos do chão, disse:
- Chan! O teu conselho foi originado por uma intenção digna do maior louvor, porém, puseste os interesses da Terra acima do interesse do Céu. Desfaz a transacção, que ontem fizeste, e que amanhã, por esta hora, a imagem se nos mostre, como outrora, bela e esplendorosa.
Três fortes pancadas, dadas no gongo da Bonzaria, puseram termo à conversa, e os bonzos, precedidos do Superior, dirigiram-se, de cabeça baixa e olhos no chão, ao Templo, para darem início às orações da manhã.
Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949
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