segunda-feira, 21 de maio de 2012

O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má (VI)

VI
Um pensamento mau

Lau-Sin, arrastando-se vagarosamente, abandonou as vizinhanças do Templo, certificando-se, de momento a momento, de que não era seguido, o que mais o convencia de que o seu disfarce era perfeito.
Contornando o casario próximo das travessas e vielas, que aliás lhe eram familiares, conseguiu alcançar a porta traseira da hospedaria, onde estava instalado, e cedo se encontrou nos seus aposentos.
Com grande espanto, porém, o hábil polícia notou que a sua bagagem tinha merecido as atenções de qualquer intruso, pois não havia uma única mala que não tivesse sido revolvida.
Na calma própria de polícia experimentado, Lau-Sin rapidamente se desembaraçou do disfarce, que tão bons serviços lhe prestara e, vestindo a sua longa cabaia, pôs uns simples óculos pretos, apertou bem à cinta as suas duas inseparáveis pistolas carregadas, e desceu, como um hóspede vulgar, ao vestiário. Aí, comprou um pacote de cigarros e perguntou ao empregado, que se encontrava ao balcão, - em ar de pessoa pouco conhecedora do meio, - onde poderia encontrar na cidade um bom fumatório de ópio, desejando de preferência um que fosse frequentado por armadores e gente do mar.
Indicado lhe foi o local, e Lau-Sin serenamente dirigiu-se à "Tai-Ma-Lou" onde, no segundo andar do prédio número 26, se instalou numa magnífica cama de ópio para assim descansar e poder melhor pensar no procedimento que deveria tomar, sempre aconselhado pela boa prudência.
Mal o ousado polícia se dispunha a preparar o seu cachimbo quando, de um compartimento vizinho lhe chega aos ouvidos a seguinte conversa, que lhe prendeu a atenção:
- "Perdi-o de vista, como por encanto, e não sei onde se meteu. Mais tarde, porém, fui à hospedaria e consegui entrar nos seus aposentos; vi-lhe toda a bagagem nada encontrei que me desse a certeza de que se trata dele. No entanto sou capaz de jurar que é ele, porque conheço-o bem e, além disso, ele não é figura que se confunda."
- "Toma, porém, cuidado, pois tens contra ti um adversário perigoso. A nossa crueldade dificilmente vencerá a sua astúcia e, para mais, estou informado de que ele é amigo íntimo do chefe da polícia local, ao qual certamente recorrerá, no momento em que precise do seu auxílio."
- "Eu desejava encontrá-lo em sítio onde pudesse fazer pagar-lhe, de uma vez para sempre, os anos que passei na cadeia de Macau."
- "Mas que viria ele cá fazer?"
- "Não faço ideia."
Mais algumas palavras foram trocadas e os dois homens retiraram-se, deixando Lau-Sin entregue aos seus próprios pensamentos, raciocinando deste modo:
- Vejo que o homem, que me seguiu, nada tem a ver com o roubo do tesouro que aqui me trouxe e que, portanto, foi quase por acaso que cheguei a descobrir o paradeiro da imagem. Mas se sabem apenas que eu estou cá e ignoram o fim que cá me trouxe, porque não hei-de eu atrever-me a apoderar-me do que foi roubado mo nosso Templo de Macau? É certo que um tal procedimento talvez não pareça próprio de um polícia, porém, o meu dever é reaver a imagem que pertence ao culto do Templo de Á-Má, imagem que tão venerada é pela população marítima de Macau. Será talvez empresa arriscada, mas não é certamente impraticável.
E, subitamente, levantando-se, pagou a conta que lhe foi apresentada, e retirou-se.

Francisco de Carvalho e Rêgo. O Caso do Tesouro do Templo de A-Má. Macau, Imprensa Nacional, 1949

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